Transgressão em campo: como as mulheres trans existem no futebol feminino? - JogaMiga

Transgressão em campo: como as mulheres trans existem no futebol feminino?

Entre a falta de pesquisas e divergências sobre diretrizes médicas, mulheres trans existem e resistem no futebol feminino

“A mulher não poderá praticar esse esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio psicológico das funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a “ser mãe”.

Esse é um trecho da carta de José Fuzueira para Getúlio Vargas, em que o cidadão pede para que o presidente proíba o futebol de mulheres no Brasil e é atendido. Por ser visto como masculinizante e mexer com o que seria “natureza” do gênero feminino, em 1941 mulheres ficam proibidas de praticar o esporte.

Mesmo depois da regulamentação nos anos 80, o futebol feminino foi visto como transgressor de vários estereótipos de gênero e sexualidade. Mas o que acontece quando uma nova barreira é rompida e mulheres trans são incluídas nos times de futebol?

Mara Gomez – Argentina


Ainda são poucos os casos, mas eles existem.  O mais emblemático é o da argentina Mara Gomez, a primeira e única mulher trans do mundo a jogar na primeira divisão nacional. No dia 7 de dezembro do ano passado ela entrou em campo pelo pequeno Villa San Carlos contra o Lanús.

 O resultado de 7×1 para o Lanús não foi dos mais animadores, mas foi uma partida histórica: Mara recebeu homenagens até mesmo do adversário, que presenteou a jogadora com uma camisa e também não faltaram elogios dos comentaristas que transmitiam a partida pela televisão. 

Na Argentina, a questão trans não é uma novidade: desde 2012, pessoas que não se identificam com a designação sexual do nascimento, podem pedir novo registro no cartório através da Lei de Identidade de Gênero. 

Sheila Souza – Brasil

Já no Brasil, a discussão está um pouco atrás. Por aqui, a zagueira Sheila Souza é a primeira jogadora de futebol trans a jogar em um time profissional no Brasil. Sheila joga no Lusaca, da Bahia, desde dezembro do ano passado. 

Caso consiga se inscrever na competição que começa em agosto, será a primeira atleta trans a disputar o campeonato baiano. Por enquanto, ela só disputou amistosos, mas já percebeu que o caminho não será fácil: 

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“Minha estreia no Lusaca foi no dia 20 de dezembro do ano passado, quando uma foto minha jogando foi parar em uma página grande de esportes os comentários foram quase todos negativos, muitos me xingando e dizendo que não era para eu estar ali”

Mas a história de Sheila com o futebol começa bem antes de 2020 e antes mesmo de transicionar: 

“É curioso porque eu não comecei a jogar futebol porque eu gostava. Eu jogava porque meu pai me obrigava. Ele percebia que na época eu era diferente dos outros meninos e queria que eu jogasse bola para ‘virar homem’. Mas acabou que eu fui gostando, e hoje sou apaixonada pelo que faço”, relata a atleta. 

A baiana de 30 anos começou o tratamento com hormônios femininos aos 21, mas só aos 26 conseguiu trocar seu nome em cartório e assim participar de competições de futebol feminino.

Isso porque em 2016 foi aprovado o decreto que permite aos brasileiros usar seu nome social em documentos oficiais.

O que diz o COI?

No âmbito esportivo, as federações seguem as diretrizes do Comitê Olímpico Internacional que datam de 2015 e estabelecem que:

“A atleta (trans) tem que ter declarado a identidade de gênero feminina e manter nível de testosterona, abaixo de 10 nmol/L durante os últimos 12 meses antes de sua primeira competição e manter este nível durante o período de competição.Já quando a mudança de sexo biológico for de feminino para o masculino não estão previstas restrições”.

Sheila começou a disputar competições amadoras com equipes femininas em 2019. Faz uso de anticoncepcional injetável (terapia hormonal feminina mais comum) de 15 em 15 dias, tem acompanhamento de um endocrinologista e a cada 6 meses testa o nível de testosterona no sangue.

Divergências nas diretrizes

Contudo, o documento do COI não discrimina o método de testagem da testosterona, apenas os valores, que podem mudar de acordo com a forma que se testa. 

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A endocrinologista Elaine Fraga, defende que existem muitos fatores a serem considerados quando pensamos na inclusão de mulheres trans em esportes femininos: 

“Precisamos pensar há quanto tempo essa mulher faz uso de terapia hormonal, considerar a continuidade desse processo e diversos outros aspectos. Nós não temos estudos que comparem a performance de uma jogadora trans à uma jogadora cis, o que dificulta uma avaliação”

Além disso, segundo o advogado e pesquisador Regis Fernando Freitas, no esporte há um princípio de autonomia de organização, de modo que algumas federações podem adotar normas diferentes.

“A discussão sobre a participação de pessoas trans no esporte é muito incipiente. Aqui no Brasil, o Direito também engatinha na questão trans, o que traz outro entrave.”, afirma Regis. 

Ainda de acordo com o pesquisador, a escassez do debate sobre o tema reside na forma com que nos relacionamos com o esporte

“O esporte por si só ele inclui. Porque é um lugar de socialização, um espaço de convívio que aproxima as pessoas. Mas por outro lado, há historicamente no esporte, sobretudo no futebol, uma tensão de poder, em que quase sempre a dominação masculina prevalece. Então quando você pensa o futebol feminino, ele foge a esse espectro masculino e quando você pensa em mulheres trans no futebol, há uma transgressão ainda maior”.

Enquanto o debate sobre o direito das pessoas trans no esporte engatinha e as diretrizes sobre a participação ou não desses atletas nas competições não avançam, Sheila treina, e compreende bem a dualidade entre inclusão e preconceito dentro do futebol: 

“Com as colegas de equipe e as rivais, eu nunca tive nenhum problema. Me sinto bem dentro de campo. Mas sei que no futebol tem muito preconceito. E não só para mim que sou trans, todas as mulheres que jogam futebol também sofrem muito. Mas já que estou aqui quero mostrar que podemos ser o que quisermos, quero dar coragem”, completa a jogadora. 

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