Faz pouco mais de um ano que Conrado Vieira, 31, assumiu o posto de analista de desempenho da Ferroviária, mas em sua bagagem já carrega um bicampeonato na Libertadores da América com o time. Sua chegada ao clube de Araraquara, em fevereiro de 2020, também coincidiu com a primeira onda da Covid-19 no Brasil e a mudança de comando da equipe grená, após a saída de Tatiele Silveira — eleita a melhor técnica brasileira em 2019 — e a chegada de Lindsay Camila — vinda da Seleção sub-17. As mudanças, porém, foram apenas de ajuste fino, afirma Conrado, que atribui a trajetória de sucesso da Locomotiva à manutenção de peças-chaves nos bastidores, que garantiram a continuidade e o aperfeiçoamento do projeto vitorioso. O Joga Miga conversou com Conrado Vieira por telefone nesta quinta-feira.
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Em que medida as mudanças realizadas no início do ano passado impactaram o desempenho do time na última temporada?
Nós tivemos mudanças no comando técnico da equipe, com a chegada da Lindsey Camila e da preparadora física Raquel Ferreira, mas grande parte da nossa equipe de trabalho se manteve a mesma. A auxiliar técnica (Roberta Batista), a preparadora de goleiras (Vanessa Caetano), o fisioterapeuta (Eduardo Duci), o médico (Lucas Peres) e até o nosso mordomo e roupeiro (Ronnie Oliveira), todo esse background continuou o mesmo. Isso contribuiu para que o projeto da Ferroviária continuasse em andamento. A adaptação foi só questão de detalhe, planejamentos mais específicos para levar o projeto adiante. Felizmente ela aconteceu de forma rápida e os resultados também vieram rápido. Nós queríamos muito essa conquista [da Libertadores]. O trabalho no último mês foi extremamente focado na dimensão da competição e a equipe cresceu muito durante o processo.
O time também foi sendo reestruturado ao longo do ano e sofreu com a saída de atletas que eram destaque na temporada. Isso pesou em algum momento para a Locomotiva?
Nós perdemos algumas jogadoras, que saíram ao longo da temporada, mas, novamente, há uma espinha dorsal, um corpo que foi mantido, e isso contribuiu bastante. Nosso grupo é um grupo muito acolhedor. Quem chegou depois, logo se adaptou. E, na véspera da competição, um fator que poderia ter sido negativo para a equipe, acabou sendo positivo. Faltava praticamente uma semana para viajarmos para a Argentina quando Araraquara sofreu o primeiro lockdown — agora estamos vivendo outro — e nós fomos obrigados a nos mudar de cidade durante uma semana para continuar treinando. Ficamos uma semana reunidos em Sumaré, próximo a Campinas, e isso acabou ajudando o grupo a se conhecer mais e a melhorar a integração da equipe.
A estreia da Ferroviária na Libertadores não foi como esperado, com uma derrota e um empate. Mas no mata-mata, o time foi para cima e garantiu uma vaga na final. Teve alguma preleção especial antes dos jogos para motivar o time?
Tivemos dois momentos muito importantes nesse aspecto motivacional. A Lindsay foi muito feliz quando trouxe a música da Iza, “Pesadão”, para a equipe. Após a primeira derrota [de 4 a 0 para o Sportivo Limpeño], ficou um sentimento estranho para todos na equipe. Nós tínhamos poucas informações sobre o time adversário, porque o campeonato paraguaio ficou paralisado durante o ano passado, e ainda tinha o peso de ser uma estreia. Mas aí a Lindsay mostrou a música para as meninas e isso deu um up no time, gerou confiança. Serviu como um refúgio, algo que nos fazia lembrar da nossa missão ali: levantar, lutar e ir até o fim. Ajudou muito na partida contra o Universidad do Chile. Era tudo ou nada. Como a nossa derrota na estreia acabou nos prejudicando devido ao saldo de gols, era ganhar ou voltar para casa. E ali foi um momento de entrega total.
Antes de ir para a Ferroviária, você trabalhou com a equipe masculina do Guarani e no futebol português. Sentiu diferença nessa mudança de modalidade para o feminino?
Fui treinador de futsal feminino durante muitos anos e vejo algumas diferenças, principalmente, no dia a dia. Nos times femininos, as relações são mais próximas. Lógico que isso pode ser de acordo com o grupo, mas ainda existe um acolhimento diferente entre atletas e comissão técnica no feminino, até pelo contexto. É uma modalidade que ainda luta por um espaço maior, por uma remuneração melhor. No masculino é mais distante. O atleta chega, faz seu trabalho e depois vai embora. Não que eu veja isso como um problema, mas é uma diferença que existe. Afora isso, é preciso destacar a resiliência das atletas, que na grande maioria não tiveram acesso desde muito novas ao que o futebol masculino já tem consolidado há décadas em nível de treinamento e competição.
Como você avalia a situação do futebol feminino no Brasil hoje?
Minha avaliação é recente, desse pouco mais de um ano que eu vivi com a Ferroviária. Mas nas conversas com membros da comissão que estão há mais tempo no futebol feminino, eu vejo um crescimento muito grande. Os clubes têm se organizado. O ponto de partida foi uma obrigatoriedade, mas vejo isso como uma coisa positiva, porque o mais importante é o final da história, ou seja, é a modalidade crescer. E isso tem acontecido, seja nas transmissões via Facebook ou outras redes que têm cada dia mais explorado esse mercado e hoje enxergam o potencial do futebol feminino.
O que falta para consolidar esse mercado?
Uma coisa leva a outra. Se os clubes investirem mais desde cedo, capacitando mais profissionais, capacitando a base, a modalidade automaticamente vai ganhar competitividade. A Ferroviária, por exemplo, é um clube que trabalha com contrato e oferece estabilidade. Isso pode ajudar lá na frente a gerar um mercado de transferência do futebol feminino — algo que tem um impacto enorme no futebol masculino — e fazer a roda girar. O futebol feminino está no caminho e logo, logo vai começar a colher os frutos.
O que você destacaria de sua atuação no Ferroviária?
Meu papel é ser um elo entre a comissão técnica e a preparação física, seja na análise dos adversários ou na avaliação do nosso próprio time. Contribuir para a discussão, ser mais uma cabeça na hora de analisar as situações e propor soluções. Depois é com a Lindsey ou a Raquel, são elas que escolhem os caminhos.